17 de setembro de 2004

O dilema da criatividade

A criatividade é um dos dilemas do mundo moderno. Durante muito tempo, acreditou-se que o potencial criativo fosse algo de origem extraordinária, um presente dado a poucas pessoas como um dom especial. Com o desenvolvimento da psicologia, a criatividade passou a ser um dos temas de estudo, em especial nas décadas de 1950 e 1960. Um dos problemas inerentes ao estudo do pensamento criativo é a dificuldade em quantificá-lo. A história do estudo formal da criatividade mostra como esta dificuldade, aliada a uma mentalidade de conformismo social tipicamente americana, levou a uma tentativa de redução da criatividade a uma simples habilidade que pode ser aprendida ou desenvolvida, de forma independente de outros traços da personalidade.

Infelizmente, a questão não é tão simples como pode parecer. É claro que o processo criativo não é um presente dos deuses reservado para poucos eleitos; ele pode ser fomentado e desenvolvido em um ambiente adequado. Porém, separar a criatividade do processo mental como um atributo estritamente independente é impossível. O pensamento criativo pressupõe um grau de liberdade que não pode conviver adequadamente com regras sociais ou comportamentais rígidas. Assim -- mesmo que o processo criativo possa ser domado e exercido dentro de um ambiente restrito -- ele implica em liberdade e capacidade de explorar limites.

A criatividade torna-se então um dilema, à medida em que é necessária para a evolução tecnológica e social da humanidade, mas traz consigo os riscos de um processo que não se enquadra totalmente dentro das regras sociais. Em um ambiente empresarial, o exercício da criatividade é sempre arriscado. Trata-se de forçar limites, pensar "fora da caixa", trazendo para o ambiente interno elementos novos que podem causar tensão por ameaçar a própria estabilidade do meio. Fechar os olhos para estes elementos não resolve o problema; apenas torna o sistema como um todo mais resistente à mudança.

A criatividade também lida com os limites entre o desconhecido e o conhecido. O que não existe -- o desconhecido -- tem um valor intrínseco alto. Aquilo que já é conhecido perde este valor. A revelação do ato criativo contém então a sua própria derrota; através dela, o que possuía valor deixa de possui-lo, por passar a fazer parte de uma experiência comum. Este fator colabora para que o ato criativo muitas vezes seja desprezado, em termos profissionais, como a simples geração de palpites ou idéias mal acabadas. No entanto, sem o insight precioso da criatividade, as coisas ficariam como eram antes. Para que algo aconteça, é preciso que o processo de criação venha primeiro. Como encorajar processo criativo, se o seu próprio resultado é tantas vezes desvalorizado? A resposta a este dilema é a chave para libertar o potencial da criatividade no mundo dos negócios.

13 de setembro de 2004

A evolução do design na Web

Depois de uma evolução inicial acelerada, a tecnologia dos browsers ficou praticamente estagnada nos últimos anos. Recentemente, novas aplicações Web começaram a explorar os limites desta tecnologia com resultados surpreendentes. A aceitação das novas aplicações reabriu o interesse pelo desenvolvimento da tecnologia dos browsers, e uma nova fase de evolução e disputa pelo mercado está sendo anunciada.
É cada vez mais óbvio que as aplicações Web estão lentamente tomando conta do dia a dia pessoal e profissional. Com a exceção de atividades em que a interatividade gráfica é essencial (por exemplo, programas de desenho ou de editoração gráfica), já é possível fazer hoje, via Internet, muita coisa que até bem pouco tempo exigia uma aplicação instalada localmente. Isso é facilmente explicável, porque passamos boa parte do nosso dia nos comunicando. A comunicação é a atividade essencialmente humana; mais do que o raciocínio intensivo, é a comunicação que mais toma espaço nas nossas vidas. E a nova geração de aplicações Web leva este fator em conta, trocando um pouco da interação com o micro por uma outra, muito mais rica, com outras pessoas através da rede.

Avanços significativos vem ocorrendo recentemente na área do projeto visual de aplicações Web. Novas técnicas de programação em Javascript tornaram as aplicações muito mais interativas. O GMail é um exemplo disso, mas há inúmeros outros serviços indo na mesma direção. Da mesma forma, muitas práticas incômodas estão sendo lentamente abandonadas. Por exemplo, os sites mais populares praticamente não usam mais 'pop-ups', aquelas incômodas janelinhas que entopem a tela do usuário. O uso de aplicações interativas em Flash é outro sinal dos tempos: os grandes sites agora usam os recursos visuais e auditivos com mais parcimônia. O mesmo não pode ser ditos de inúmeros outros sites, que continuam usando este tipo de recurso, mas que só vão conseguir afugentar mais e mais pessoas.

Curiosamente, a tecnologia que está sendo utilizada hoje para as aplicações Web é basicamente a mesma que já estava disponível há três ou quatro anos atrás. Durante a fase de transição onde o domínio da Microsoft se firmou, a evolução foi acelerada, mas se estabilizou a partir do momento em que o Internet Explorer se tornou o browser dominante. A estabilidade permitiu uma evolução lenta, associando experiências práticas e muita criatividade para desenvolver um novo modo de entender as aplicações Web. Porém, os excelentes resultados de hoje carregam no seu interior os limites da tecnologia atual. Por isso, novos desenvolvimentos estão sendo anunciados. Podemos indicar algumas vertentes:

  • O What WG, ou Web Hypertext Application Technology Working Group é um grupo que procura desenvolver extensões às linguagens usadas para desenvolvimento Web (HTML, CSS e JavaScript) visando facilitar o desenvolvimento de novas aplicações Web. O grupo opera paralelamente à W3C (World Wide Worb Consortium), com o objetivo de acelerar o desenvolvimento do padrão, mas com a intenção de submetê-lo à aprovação final assim que obtiver uma base sólida.
  • A Macromedia aposta no Flex, uma extensão do Flash orientada para a producão de interfaces visuais ricas. Do Flash, o Flex herda a interatividade e os aspectos mutimídia, mas passa a incluir também a preocupação com o desenvolvedor de aplicações. Infelizmente, o Flex carrega também o preconceito que existe, da parte dos desenvolvedores 'sérios', contra o Flash, que ficou marcado como uma tecnologia de resultados bonitinhos mas incômodos e pouco efetivos.
  • O W3C tem suas próprias apostas, e as principais são XForms e o SVG. O SVG parece já ter nascido meio morto, pois a predominância do Flash torna difícil que um substituto possa se impor. Já o XForms entra na briga direta com o WebForms, defendido pelo WhatWG.
  • E a Microsoft... não poderia ficar de fora desta briga. A aposta da Microsoft não está na Web como a conhecemos hoje; está no LongHorn, a nova geração do Windows, que utilizará extensivamente uma combinação de XML e comunicação em rede embutida no sistema para tentar dominar de vez este mercado com uma tecnologia proprietária.


Vale a pena falar mais um pouco da Microsoft. Um comentário recente anunciou, de forma bastante contundente, que a Microsoft perdeu a guerra das APIs -- e por extensão, pode perder a guerra pelo controle da Web. É uma afirmação bombástica, mas que vem de fonte segura. O autor, Joel Sposky, é um ex-engenheiro da Microsoft e cronista reconhecido na mídia especializada. Os seus argumentos são igualmente fortes. Ele acredita que a Microsoft não conseguirá sustentar sua posição dominante em um mercado baseado em aplicações Web. Ao perceber isso alguns anos atrás, a empresa interrompeu o desenvolvimento do Internet Explorer, e começou o projeto do que hoje é chamado de Longhorn. Porém, o timing parece ruim para a Microsoft. Com criatividade, os desenvolvedores superaram as limitações dos browsers atuais e conseguiram mostrar o poder das aplicações Web. Por outro lado, o Longhorn vai ficando cada vez mais longe. Nada está certo ainda, mas há uma possibilidade alarmante para a Microsoft, de que ela chegue ao mercado tarde demais, em um mercado já acostumado a soluções abertas, e não consiga mais operar uma transição em larga escala para o Longhorn. A resposta para isso, só o tempo dirá.

9 de setembro de 2004

Programando com ferramentas livres

Desde 1981, estive envolvido com programação de computadores. Tive oportunidade de desenvolver trabalhos em áreas distintas, desde software básico até aplicações comerciais, e trabalhar com várias linguagens. Porém, nos últimos dois anos, estive afastado da área técnica, trabalhando com outros tipos de coisa. Continuei acompanhando o desenvolvimento de várias tecnologias, apenas por curiosidade. Desde março, estou voltando para a minha área de origem, que é a programação pura (não análise de sistemas, apesar de ser uma necessidade; mas não há mal nenhum em ser um bom programador). Recentemente, comecei a escrever alguns programas comerciais novamente. Decidi optar por ferramentas livres, devido a algumas questões éticas que considero importantes. Ainda estou engatinhando na escolha do meu kit de ferramentas, mas já pude observar alguns fatores interessantes.

Pela sua própria natureza, há setores da área de desenvolvimento de sistemas que são muito bem servidos de ferramentas livres. Por exemplo, há inúmeras linguagens interessantes, com suporte para múltiplas plataformas. Python e Perl são as mais conhecidas e populares da lista. Ruby e Lua são outras opções que tem ganhado bastante espaço (a propósito, Lua é uma linguagem brasileira, desenvolvida na PUC/RJ mas que já é utilizada em projetos no mundo todo). Todas estas linguagens tem em comum o fato de se afastar bastante do modelo de programação ditado por outras linguagens tradicionais como C, C++ e Java. Elas são interpretadas, permitem a prototipação rápida, são dinâmicas e na sua maioria, muito flexíveis no que diz respeito a tipagem dos objetos. Nem por isso estas linguagens tem desempenho ruim. Primeiramente, o tipo de construção que elas permitem favorece a busca da eficiência no design. O programador fica livre de cuidar de detalhes como administração de memória para se concentrar no funcionamento do programa, e por isso, o desempenho é favorecido. Outro fator importante é a qualidade das bibliotecas de suporte, que são altamente otimizadas, e rodam muito mais rápido que o código equivalente de um programador mediano em C, por exemplo.

Escolhida a linguagem, é preciso montar um bom ambiente de desenvolvimento. E é aí que os problemas se tornam mais evidentes. As alternativas comerciais estão fora de questão -- lembre-se, estamos falando de basear o desenvolvimento todo em ferramentas livres. Apesar de haver inúmeras bibliotecas de excelente qualidade para praticamente qualquer coisa (incluindo suporte a banco de dados e arquiteturas Web avançadas) falta uma coisa básica: um IDE bom, eficiente e estável. Há projetos interessantes em andamento. O Eclipse se propõe a ser um framework extensível para IDEs de múltiplas linguagens. E no caso do Python, o Boa Constructor é um projeto que tem muito potencial, apesar de faltar (na minha opinião) uma maior atenção para detalhe.

Acredito que o problema pode ser parcialmente explicado pelo fato de boa parte dos programadores já terem seus próprios ambientes de desenvolvimento. Os que usam Windows possivelmente já tem o IDEs do compilador C; aqueles que usam Linux tem uma quantidade grande de ferramentas de console, muito produtivas para desenvolvimento de bibliotecas, mas que não oferecem o mesmo grau de facilidade para desenvolvimento de aplicações comerciais. Mesmo assim, é um problema curioso. Parece que este tipo de projeto não funciona bem em termos de open source. O mesmo problema ocorre com as ferramentas de escritório. O que estes projetos tem em comum? São projetos grandes, complexos, geralmente com uma arquitetura monolítica. Ao contrário, os melhores projetos de código livre são altamente modulares. Isso pode ser explicado. Devido à sua amplitude, a visão conceitual necessária para um projeto de maior porte exige um grau de dedicação que a maioria dos desenvolvedores de código livre não pode garantir. Projetos modulares são mais fáceis de coordenar e exigem um tempo menor para sua administração.

Acredito que no final, os projetos de código livre conseguem cobrir estas deficiências com o desenvolvimento gradual dos módulos, até chegar ao produto final. Apenas o tempo necessário é mais longo, mas a qualidade não precisa necessariamente ser inferior. Para quem deseja usar as ferramentas no ponto em que estão agora, é preciso ter em mente estas limitações, e estar disposto a trabalhar junto e colaborar para que o ambiente se torne melhor.

3 de setembro de 2004

Alguém conhece a lei de Parkinson?

Em 1958, C. Northcote Parkinson escreveu um livro chamado "Parkinson's Law: The Pursuit of Progress". O livro tem várias tiradas e frases famosas que hoje são repetidas sem atribuição à fonte original. A lei mais famosa é a seguinte: "Work expands to fill the time allotted to its completion", ou (traduzindo livremente) "o trabalho expande até ocupar todo tempo alocado para sua execução".

Mas a lei que nos interessa aqui, derivada do trabalho de Parkinson, é outra. Ela explica por quê os projetos mais malucos são vendidos, e os mais simples ficam bloqueados em discussões intermináveis. Apesar da idade do livro, a lei se aplica maravilhosamente aos dias de hoje, como mostram as discussões intermináveis[1] em listas de email.

A tese básica é a seguinte: quando um projeto é grande demais ou complicado demais, ninguém se dá ao trabalho de checar os detalhes, partindo do pressuposto de que alguém já deve ter feito isso antes, ou o projeto não chegaria a ficar desse tamanho. Além disso, ficar calado é muitas vezes uma forma de disfarçar a ignorância no tema.

Por outro lado, projetos simples são malhados exaustivamente até a morte, porque todo mundo se sente confortável em fazê-lo. É uma oportunidade para lembrar aos outros que você ainda está ali, e de se posicionar em um tema relativamente tranquilo.

É por isso que a reforma do banheiro da portaria nunca é aprovada, enquanto a implantação de um sistema de gestão empresarial de última geração é aprovada. Simples, não?


[1] Este artigo não poderia nunca ter sido escrito sem a leitura de um email antológico postado por Poul-Henning Kamp na lista de desenvolvimento do FreeBSD, intitulado A bike shed (any colour will do) on greener grass.... Em outras palavras, qualquer que seja a cor da casinha da bicicleta, ela serve.

2 de setembro de 2004

Workflow profissional & pessoal

O termo workflow surgiu durante a década de 90 como uma das buzzwords do mercado. Com o tempo -- como toda moda -- o interesse do mercado aparentemente diminuiu, com o surgimento de outras ondas (ERPs, etc.). Hoje, o conceito já está razoavelmente solidificado, principalmente em grandes empresas. Mas a promessa inicial não se cumpriu em toda sua extensão, principalmente pela falta de ferramentas intuitivas para a configuração e a administração dos processos internos.

Durante este período (em 1996), eu desenhei um sistema de workflow como uma proposta para uma empresa em Belo Horizonte. A empresa fornecia sistemas administrativos e comerciais, baseados em uma interface convencional. A idéia era modificar o funcionamento do sistema, orientando-o para os processos realizados no dia a dia. A interface básica do usuário era uma caixa de afazeres -- similar a uma caixa de mensagens de email, só que ela indicava a sequência de atividades a fazer, de acordo com as prioridades. O objetivo era manter o foco das atividades e permitir uma navegação mais fácil pelas opções do sistema. Recentemente, retomei a pesquisa deste tipo de interface, agora baseada em aplicações Web. A sua aplicação em ambientes comerciais é bastante óbvia, mas o que mais me interessa agora é a sua extensão para a administração da informação pessoal.

É cada vez mais evidente que a Internet supera por uma larga margem a nossa capacidade interna de processamento de informação. Especialistas reconhecidos recebem literalmente milhares de mensagens por dia [1] [2]; mesmo descartando o spam, restam ainda centenas de mensagens válidas. Porém, muitas das mensagens válidas são na realidade notificações simples, enviadas somente para manter-nos à par do andamento de um processo.

O email é utilizado para este tipo de comunicação por absoluta falta de algo melhor. Além disso, as pessoas nitidamente preferem ter uma fonte de informação primária, mesmo que sobrecarregada, a ter que dividir sua atenção entre diversas fontes. O email se encaixa perfeitamente nesta descrição. O que falta é dispor de ferramentas melhores para organizá-lo e transformá-lo efetivamente em um portal de gerenciamento de informações. As principais carências são:

  • Associar contexto às conversações independentes. O GMail oferece uma abordagem interessante, organizando automaticamente as mensagens em conversações lineares, e facilita a pesquisa das mensagens. Outra novidade importante é o uso dos labels no lugar das tradicionais pastas, permitindo a organização das mensagens de uma forma não-hierárquica e multidimensional que é mais rica e intuitiva.

  • Organizar a informação no tempo. Várias das conversações que são mantidas por email se referem a processos que estão em andamento. Uma boa interface de gerenciamento pessoal de processos poderia ser associada automaticamente ao email, permitindo a monitoração do andamento destes sem que houvesse necessidade de gerenciar individualmente cada uma das mensagens.

Para que estas mudanças possam ser feitas, é preciso partir de um ponto de vista novo. Não basta pensar na caixa de correio (o inbox) como uma simples lista de mensagens. O GMail já rompeu com parte dos conceitos existentes, trazendo uma abordagem nova para a contextualização das conversações. Porém, ainda falta dotar o sistema de uma maior capacidade de organização no tempo. Uma ferramenta intuitiva de modelagem de processos é necessária, para que cada usuário possa configurar e gerenciar seus próprios processos. A Esther Dyson chamou este tipo de software de VisiProcess em analogia com o VisiCalc, o software que libertou os usuários da necessidade de contar com especialistas em TI para desenvolver modelos financeiros ou matemáticos. Esta ferramenta ainda não existe, mas a demanda está crescendo; falta acertar a mão em um novo paradigma. Quem conseguir encontrará um novo filão de mercado ainda inexplorado para atacar.

1 de setembro de 2004

A busca de uma estratégia estável: privacidade x transparência

A discussão sobre a privacidade na Internet vem crescendo à medida que a rede permeia cada vez mais nosso cotidiano. Recentemente, um novo elemento foi adicionado à discussão, causando controvérsia: a transparência.

Basicamente, a privacidade representa o direito individual dos cidadãos de controlar o seu próprio espaço individual; aplicada à Internet, representa o direito de escolher quando, como e quais informações pessoais podem ser disponibilizadas para uso de terceiros. Já a transparência, à primeira vista, é um conceito aparentemente oposto; ela representa a possibilidade de saber quais informações estão disponíveis e obter a própria informação -- a qualquer momento, e sem nenhum impedimento, com a confiança de que a informação é confiável e completa.

Surpreendentemente, os dois conceitos não são antagônicos, mas se complementam. Acredito que uma sociedade só pode ser estável se encontrar um ponto de equilíbrio entre a privacidade e a transparência. Isto significa que, aplicados isoladamente, nenhum deles gera um sistema social estável e eficiente; porém, uma combinação adequada forma um sistema que não pode ser facilmente desequilibrado. Em sistemas naturais, este mecanismo é conhecido como uma estratégia evolutiva estável, ou ESS.

Uma ESS é um conjunto de características de uma população que forma uma comunidade estável a longo prazo, resistente a invasões por novas espécies. Em sistemas sociais, o conceito de ESS pode ser utilizado para modelar o comportamento de um grupo à medida que a proporção de diferentes elementos varia dentro da população. No caso em questão, podemos imaginar que diferente tipos de indivíduo podem valorizar de forma independente a sua privacidade e a transparência. A análise da dinâmica social indica se o sistema em questão é evolutivamente estável ou não.

A chave para entender a estabilidade a longo prazo reside no estudo dos aspectos econômicos. Uma sociedade economicamente ineficiente não se sustenta, e é eventualmente substituída por outra mais eficiente com o passar do tempo. A privacidade e a transparência modificam fundamentalmente a dinâmica da economia interna da comunidade; o conhecimento de determinadas informações pode favorecer os negócios, enquanto as barreiras à comunicação impõem custos adicionais que tornam a economia menos eficaz.

A privacidade é tida por alguns como um dos pilares fundamentais de uma sociedade livre. No entanto, a adoção da privacidade plena carrega consigo problemas práticos que reduzem sua eficiência em termos econômicos. Hoje em dia, já estamos relativamente habituados a abrir mão de partes importantes de nossa privacidade em nome da conveniência. Registros de crédito bancário são consultados, com nossa autorização implicita, para fins de concessão de crédito ou simples pagamento de contas. Em uma sociedade onde a respeito à privacidade fosse levada ao extremo, talvez não fosse possível realizar este tipo de consulta. Este tipo de comunidade não seria evolutivamente estável, pois a entrada de indivíduos dispostos a abrir mão de parte da privacidade em troca de benefícios econômicos lhes daria uma vantagem importante sobre os outros membros da sociedade.

O caso oposto também apresenta problemas. Uma comunidade onde todos indivíduos abram mão da privacidade em nome da comunicação livre não é evolutivamente estável, pois um indivíduo que repasse informações falsas também poderia ganhar uma vantagem sobre os outros, desequilibrando o sistema. Este indivíduo teria acesso às informações privativas de todos os outros, mas ninguém teria acesso às suas informações, tornando-o inatingível.

Para que a comunidade atinja um ponto de estabilidade, é importante que ambos os conceitos -- transparência e privacidade -- atinjam um ponto de equilíbrio. Cada indivíduo precisa dispor de um mínimo de privacidade, detendo a opção de revelar ou não suas informações pessoais quando solicitado. Por outro lado, é importante que haja transparência nas relações, para evitar que um indivíduo abuse do sistema. É importante reconhecer que a privacidade tem um custo econômico que a torna inviável a partir de um certo ponto; da mesma forma, a transparência torna-se uma necessidade à medida em que permite que a sociedade se torne economicamente mais eficiente. A longo prazo, há bons motivos para esperar que um ponto de equilíbrio venha a ser atingido, mas certamente ainda teremos muito que caminhar até chegar lá.

O futuro é Wireless LAN

Aplicar a futurologia à previsão de mercado de tecnologia é uma tarefa mais difícil do que parece. A evolução do mercado muitas vezes não parece seguir uma lógica evidente. Não é só uma questão de marketing -- como querem alguns -- ou de méritos técnicos, como acreditam outros. Nem sempre a tecnologia suportada pelos principais players do mercado vence. Nem sempre a melhor tecnologia vence. Nem sempre o primeiro a chegar leva alguma vantagem. Mas há uma lógica, talvez um tanto obscura e longe de ser óbvia, que ajuda a explicar como estas coisas acontecem.

A evolução da tecnologia de Wireless LAN segue, por enquanto, o mesmo caminho difícil e complicado seguido por outras tecnologias. Um exemplo claro é o TCP/IP. Inicialmente o patinho feito das tecnologias de rede, o TCP/IP acabou sendo adotado pela Internet quase por acidente, como uma solução intermediária para resolver os problemas de escalabilidade do NTP (que já era uma evolução do protocolo original da Arpanet), enquanto não se resolviam as questões finais de um projeto muito maior e mais ambicioso: o modelo ISO de redes.

Todo mundo que estudou redes nos anos 80 e 90 conhece o modelo de sete camadas da ISO. O que pouca gente sabe é que o TCP/IP, apesar de estruturado em camadas, não segue o modelo ISO. O modelo TCP/IP é mais simples, e faz uma série de compromissos bastante pragmáticos. Além disso, o modelo ISO era sustentado por uma aliança global de fabricantes de hardware e software, e contava com o apoio das entidades de normatização nacionais de vários países filiados à ISO (caso do Brasil, por exemplo). Porém, mesmo assim, o modelo ISO nunca decolou, e o TCP/IP se firmou. Porquê?

A introdução de novas tecnologias segue um padrão no tempo todo especial. Conceitos como early adopters e massa crítica são adotados para explicar o ritmo de adoção de uma determinada tecnologia. No caso específico das tecnologias de telecomunicação, o efeito multiplicador da base instalada se faz sentir de forma ainda mais acentuada. É este o fator primordial -- o fato de que qualquer pessoa que queira se comunicar com a rede existente precisa de um equipamento compatível. Não há nada mais importante do que isso.

No caso das wireless LANs, o que se vê é uma repetição do mesmo fenômeno. O protocolo 802.11b -- base dos investimentos iniciais em WLAN -- é reconhecidamente limitado em vários aspectos. Porém, o volume de instalações continua crescendo, e os sucessores do 802.11b já começam a fazer estragos em outras opções mais bem nascidas, como é o caso do Bluetooth.

O que leva o 802.11b, com todas suas limitações, a ocupar um espaço tão proeminente no mercado? Primeiramente, ele é uma solução para problemas que já existem. Ele pode ser usado de forma transparente para redes locais ou para links privativos de alta velocidade em distâncias respeitáveis. Segundo, a tecnologia funciona. E finalmente, o custo é imbatível.

O mercado oficial vem tentando entender o motivo deste sucesso, mas segue uma abordagem equivocada. O uso do 802.11b não ocorre apenas por causa do preço, como supõem alguns. O principal charme da tecnologia é resolver problemas que existem de forma prática, e porque não, barata. Por outro lado, o mercado de telecomunicações, de forma geral, vive uma situação totalmente diversa -- a necessidade de estimular demanda de massa por produtos que ainda não existem, para um mercado que ainda não está pronto.

Se aplicarmos a análise convencional às Wireless LANs, vemos uma situação paradoxal. As pessoas não procuram ainda pela mobilidade, banda larga, privacidade, e garantia de serviço -- ao menos, não estão conscientes destas necessidades, ou até mesmo acreditam que ainda estão longe deste ponto. O que elas querem é resolver um problema. A solução do problema imediato pode até trazer outros problemas -- mas estes serão resolvidos um de cada vez. Esta mentalidade pragmática já transformou o TCP/IP, com todas suas limitações, em uma infraestrutura global de transporte. A tecnologia de Wireless LANs segue pelo mesmo caminho. Ainda é cedo para dizer quantas melhorias serão necessárias no futuro, mas nada pode derrotar uma solução simples que funciona.