20 de maio de 2005

Desobediência civil & propriedade intelectual

O que é desobediência civil? Em resumo, e correndo o risco de hipersimplificar o assunto, é o ato de desobedecer conscientemente a lei, com o intuito de agir de acordo com a própria consciência. O termo foi cunhado pelo filósofo americano Henry Thoreau, em um livro com o mesmo nome. De apenas 13 páginas, é um manifesto importante, ainda que pouco conhecido (e ainda menos compreendido).

O conceito de desobediência civil foi a base para alguns dos eventos definitivos do século XX, como a luta de Gandhi pela libertação da Índia e a luta, anos mais tarde, de Martin Luther King Jr. pelos direitos humanos nos EUA. Mas o que um conceito filosófico tão nobre veio fazer aqui, neste espaço de rascunhos rotos?

Tudo começou com uma conversa, semanas atrás, com um grande amigo meu, cuja identidade não vem ao caso agora. Falávamos sobre direitos autorais e pirataria, redes P2P, etc. Ele me disse que já havia brincado com software P2P antes, mas que não utilizava mais, por um motivo simples: é contra a lei, portanto é errado, e ninguém deve violar a lei, certo?

Do ponto de vista estritamente ético, o argumento parece imbatível. Afinal de contas, se há uma lei, quem viola a lei está indo contra a própria sociedade; e portanto, o seu comportamento merece ser repreendido, por menos gente que seja prejudicada por ele. Assim, o fato de que o 'roubo' de conteúdo digital não implica na indisponibilidade dos bens para seu legítimo dono não é uma atenuante razoável; roubo é roubo, simplesmente.

Alguma coisa me incomodou no argumento. Acho, sinceramente, que há situações em que o uso de material obtido em redes P2P é perfeitamente aceitável. Curiosamente países inteiros foram construídos sob as bases do oportunismo da tão falada 'economia de mercado', com pouco ou nenhum respeito pela propriedade intelectual de outros (adivinhe qual o país). Hoje, a China segue um caminho similar. Porém, se aplicarmos o argumento ético, vemos que ele falha neste caso. Por isso, fiquei um tempo sem conseguir articular uma defesa daquilo que no fundo, para mim, parecia plenamente defensável.

Com o passar dos dias, percebi que eu estava analisando o problema sob o aspecto errado. Violar uma lei é um ato eticamente condenável. Mas e se a lei não for justa, ou melhor, se ela não refletir corretamente os desejos da maioria? Esse é outro caminho. Neste sentido, a desobediência civil surge como um conceito essencial. Mas é importante diferenciar a 'desobediência civil' da traquinagem pura e simples. Trata-se não de uma atitude oportunista, ou interesseira, de quem deseja se apropriar de material alheio. Trata-se de uma postura ética, consciente, e disposta a assumir as consequências, daqueles que não concordam com as regras estabelecidas, por entender que elas não representam o melhor interesse da sociedade. Grandes transformações sociais por vezes acontecem assim -- através do exemplo, e não sem sofrimento. No caso, trata-se de marcar uma posição: o fluxo conhecimento deveria ser regulamentado para o benefício de todos, e não apenas em nome do poder econômico estabelecido. E acima de tudo, o direito das pessoas, como consumidoras de informação, deve ser respeitado. É preciso restaurar o equilíbrio, permitindo às pessoas o acesso e o uso da informação, em condições não restritivas.

Este artigo foi inspirado por uma matéria que li hoje: Lecturer censored in Spanish University (UPV) for defending P2P networks. Não tenho como julgar o mérito neste caso, ainda mais depois de ouvir apenas um lado da questão. Mas nitidamente, o chamado da 'desobediência civil' parece ser o único instrumento que pode ser utilizado neste caso. Infelizmente, ainda nos falta (coletivamente) a coragem necessária para executá-la
.

Nenhum comentário: